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Glossário de (des)identidades sexuais

outubro 27, 2023

Compartilho com alegria contribuição ao “Glossário de (des)identidades sexuais” (Edufba, 2023). De título “Flexível”, a entrada que assino corresponde a uma versão condensada de alguns achados do meu estudo doutoral, uma etnografia entre gays adolescentes que se dedicam à dança na periferia de Salvador. 

Em que pese o fato de que grande parte dos verbetes que compõem o Glossário encontram-se circunscritos a contextos etnográficos precisos (mesmo que em geografias variadas), sem que os autores empreguem, necessariamente, o esforço de uma sistematização enciclopédica – praxe no gênero “dicionário” -, tal não chega a configurar fragilidade. Em vez de mirar a síntese de conceitos já consolidados na antropologia, trata-se de um glossário etnográfico, que persegue processos de (des)identificação. 

O glossário aposta em entradas, eu diria, em uma “chave menor”. Consiste talvez aí o acerto insuspeito, a atualidade do material, também como a abrangência a que visa compilações dessa natureza. Dito de outra maneira, uma perspectiva estreita de glossário apresentaria escassa sensibilidade a léxicos pouco estabelecidos, deixando de capturar aquelas gramáticas emergentes e ainda incipientes, linguagens gagas ou subterrâneas (mas, enquanto linguagens, dignas de se inventariar por seu próprio direito). 

Não sendo demais lembrar, a coletânea tem por princípio contribuir com um campo cujo caráter sabidamente vibrante se faz notar no acrônimo que, até a hora em que fui dormir na noite de ontem, conhecíamos por LGBTQIAPN+. Este crescendo enumerativo torna presumível um horizonte aberto onde novos compostos linguísticos, terminologias e vocabulários estão por se articular.

Louvo, nesse sentido, o trabalho sério de iniciativa de Moisés Lino e Silva e de Guillermo Vega Sanabria, coordenadores do volume, que conta ainda com um igualmente necessário posfácio de Regina Facchini. Nesta breve nota, ponho-me em franco e livre diálogo com esses autores, desejando uma boa leitura aos curiosos! 

(na capa – e que capa! – ela, Ginna D’Mascar, por João Bertholini)

Quebrando Tudo: o pagode baiano no centro do debate

setembro 21, 2023

“Um gênero musical no limite do aceitável”, é como eu terminava o que se chamaria “Pagode e perigo: rediscutindo contendas de gênero na Bahia”, artigo publicado há alguns anos na Campos – Revista de Antropologia. Pouco conclusivo, o arremate se endereçava a questões da vida moral e violência de gênero, enlace que minha análise buscava desfiar.

Aquelas palavras me aproximam, hoje, dos dez anos que nos afastam do Quebrando Tudo, evento que originou o texto. A iniciativa reunia um corpo heterogêneo de artistas, talvez ativistas, mas sobretudo estudiosos que se interessavam em pensar o pagodão.

Oferecer dignidade ao pagode baiano não era o caso; primeiro, porque o pagode não carece de defesa; depois, porque dançar – se quisermos, quebrar – é inteligência, é já pensamento. “Dar voz” não envernizava a semântica das nossas exposições, nem se reclamava “lugar de fala”. Consolidados ou emergentes, com todo respeito a esses paradigmas, que em larga medida também são paradigmas éticos, éramos menos pretensiosos.

Tentamos uma segunda edição, daquela vez em Cachoeira. Ah, Cachoeira escapa em definitivo de qualquer papo sobre pretensão. Não é pretensão. Que o samba de roda do Recôncavo revela-se no pagodão como a sua matriz cultural, nós todos sabemos. Mas nem o dão do pagode (o fenômeno é superlativo) e nem a maravilhosidade do Cine Teatro Cachoeirano bastam para considerarmos exitoso o Quebrando Tudo.

Eu falava num corpo disperso de agentes, e talvez possamos, agora, alcançar o maior trunfo da aventura Quebrando Tudo: o modo com que, não sem alguma saudade, seguimos. Dispersos. No Quebrando Tudo, era em meio à dissonância que nos topávamos com o ritmo e com a harmonia .

Em tempos de redes abafadas por convicções, sinto falta de quebrar tudo. Antes de uma recusa a falar para convertidos, quebrar tudo me soa sempre um convite, como um espaço (e também um tempo) para hesitar. Oportunidade. Não é apenas ousado como corajoso seguir com o problema.

Enquanto convidado (mas entusiasta de primeira hora), posso dizer que no Quebrando Tudo a surpresa da dúvida, as delícias do desafio, o enlevo da provocação, predominavam sobre o caráter do encontro, instituíam o caráter de encontro, então cultivo de novas imaginações políticas.

Entre os indóceis acadêmicos da primeira, da segunda e das edições que não chegarão a acontecer, não existe hiato. Cultura popular é zona de perigo. Eis nosso ponto pacífico. Se no Quebrando Tudo uma assertiva tal não pode figurar contradição em termos, não deixemos de quebrar. É tempo ainda, Quebrando Tudo é e não é uma metáfora.

A SBS & O PROJETO RETRATOS

julho 19, 2021

Reunindo um conjunto de biografias intelectuais de alguns dos nomes responsáveis pelo desenvolvimento da sociologia Brasil adentro, acaba de ser lançado pela Sociedade Brasileira de Sociologia um e-book que considero fundamental.

Além dessas proeminentes sociólogas e sociológos espelharem manifesto compromisso com a disciplina, muitos dos perfis traçados moldaram instituições e departamentos – contribuições que por vezes permanecem desconhecidas por neófitos.

Fico feliz que, dentre essas coortes de estudiosos, Guaraci Adeodato represente a Universidade Federal da Bahia. Por certo canhestro, o recurso que faço a um jargão demográfico (coorte) não é fortuito quando me dirijo a Guaraci, dada a dupla posicionalidade que assumia no campo acadêmico. Não necessariamente nessa ordem, Guaraci era cientista social e demógrafa, muito antes de tornar-se moda erigir a bandeira da “interdisciplinaridade”.

Por outro lado, algo em particular chama minha atenção na participação de Guaraci nessa coletânea. O último projeto de investigação tocado por ela revelava uma preocupação pela manutenção – a nível prático, cotidiano, quase microscópico – da vida.

Guaraci se interessava como esse movimento, dinamizado nos arranjos domésticos por diferentes gerações, conjugava-se a padrões emergentes, mas de expressão relevante nos levantamentos censitários mais recentes na Bahia. 

Continuidade e mudança. A coletânea da associação científica dá carne à criação e manutenção de agendas e centros de pesquisa, realizações que trazem invariavelmente à tona linhagens e heranças, rostos e retratos.

Nessa esteira, o que agora escrevo não é mais do que uma nota de rodapé e um convite para a leitura do legado de Guaraci, recuperado de modo tão honesto e cuidadoso por Anete Ivo. Anete, a quem tenho repetidamente reportado minha admiração.

Iniciado na pesquisa social por Guaraci, nutro, como ela, um interesse persistente em diálogos intergeracionais e no trabalho que esses encontros são capazes de originar. Acredito que seja o ímpeto que anima a importante iniciativa da SBS: estimular conversas intergeracionais, decisivas para novas histórias e novos futuros sociológicos.

Roberto Machado *

julho 19, 2021

* Texto veiculado originalmente no perfil de Instagram do autor em 20/05/2021

“Quando olho retrospectivamente para esses anos, sinto-me feliz por ter descoberto logo (…) que um professor é antes de tudo um aluno capaz de escolher o tema de seus estudos e se dedicar a ele enquanto lhe interessa”.

Ao relancear minha leitura de Impressões de Michel Foucault na manhã de hoje, ocasião em que soube da morte de Roberto Machado, algo me saltou aos olhos: o modo como ele sustenta ativamente, seja no relato em primeira pessoa acerca de Foucault ou de Deleuze, seja de si próprio, a reversibilidade das posições de professor e aluno. Com ele aprendemos que mestre e pupilo não dizem respeito a uma substância, mas a um gesto, que denota intensidades transitivas.

Não diria que Roberto Machado restitui, nesse livro, o lugar da paixão e do prazer na sala de aula e em um itinerário intelectual. Eros simplesmente nunca esteve ausente desses espaços e trajetos. Acaso ou não, é significativo que a última publicação do filósofo pernambucano se proponha a capturar o estilo e assinatura de alguns dos eminentes pensadores cujos cursos acompanhou avidamente. Sua última obra, singular no conjunto, é um testemunho vivo, investido de despojamento e grandeza, de como ensinar se trata menos de transmissão e mais de um exercício de envolvimento e de criação de ambientes.

Quando um professor fecha os olhos, me sinto mais triste. Especialmente hoje, a passagem de Roberto Machado me fez sentir saudades de uma sala de aula, do prazer estético que é assistir a um Professor desenhar com a voz o pensamento, e do entusiasmo que esse movimento é capaz de provocar.

Alvorada *

julho 19, 2021

* Texto veiculado originalmente no perfil de Instagram do autor em 14/04/2021, período em que o filme foi lançado no festival É Tudo Verdade

Luzes se apagam. É cinema, é tudo verdade, é Alvorada. A voz que nos introduz ao filme, já a conhecemos, e não é a da presidenta Dilma. Como vota, deputado? A abertura ecoa o emblemático, porque sabidamente prolongado e estarrecedor, voto de Jair Bolsonaro, vociferando quando ainda parlamentar. Sua manifestação remonta à fatídica noite em que a Câmara decide pela abertura do impeachment, processo que termina por destituir Dilma Rousseff da cadeira da Presidência da República.

Embora toda voz tenha um rosto, Lô Politi e Anna Muylaert poupam a nós, espectadores, quiçá um Brasil, de se ver no espelho. Nem por isso deixamos de nos sobressaltar com o que de colérico escutamos. Aquela voz, afinal, tem e não tem um rosto. Pertence ao titular, poderoso de ocasião, do mais alto cargo do executivo federal, mas se confunde também com a do nosso vizinho de porta. É difícil precisar, testemunhamos igual.

O incômodo instaurado por essa escolha das diretoras anuncia que o Alvorada tem algo de obscurantismo nascente – logo, talvez seja um filme principalmente sobre, se não para, o depois. Histórico por excelência. Sem rosto, não apenas porque o que vemos não agrada, mas porque a visão é um sentido que insinua horizontes, experiência demasiado remota nestes dias turvos.

Já de princípio o filme nos coloca invariavelmente no tempo presente. Por outro lado – mais uma vez de forma acertada – nos dispõe no Palácio do Alvorada, estada que passamos em companhia de uma Dilma resistente ao golpe e recalcitrante a câmeras. Se, enquanto ambiente de morada e ofício da presidenta, aquelas instalações consistem na condição para lá estarmos, podemos argumentar que há um pouco da gente e de cada um, que se vai, talvez encaixotado na mudança a transportar para algures a mobília em seu bota-fora; derradeiras cenas do longa. Neste sentido, não deve ser obra do acaso assistirmos ao filme confinados.

Deixamos o Alvorada com Dilma, em sua sóbria e ainda enigmática bravura, mas também com Lô Politi e Anna Muylaert, cuja sensibilidade, ao eximir a narrativa de explicações, faz falar a atmosfera daqueles dias palacianos.