Posts Tagged ‘homofobia’

Me chamam senhora, ou relatos do estar sendo no Atlântico

julho 20, 2012

Não que eu não fosse (lido como) gay em Portugal, ou não que lá inexista homofobia – eu mesmo cheguei a narrar aqui um caso lá me sucedido. Mas me chocou um pouco quando, recém-chegado na “terrinha”, senti minha presença passar despercebida em meus primeiros dias naquele país. Como se tudo ali estivesse nos conformes: eu, supostamente com um pinto entre as pernas (sim, o mantenho), e com postura de macho. Não, né? Mas o modo de se vestir daqueles meninos – que, pelo comportamento masculinizado, até que hajam outras “evidências”, eram socialmente lidos como héteros (quer dizer, eles sequer “apareciam”, pois estavam afinadinhos com a norma) – não destoava muito do estilo que ali eu incorporava (por exemplo, eu não usava batas em Portugal) ou do que já era incorporado por alguns gays no Brasil. Até meados de 2010, período em que viajei, pelo menos na Bahia era ainda coisa de viado menino vestir-se com calça justa. Lá não. Não posso negar que (não só) isso dificultou o meu trabalho: tardei a compreender quem era ou não gay em Portugal, e estou certo de que, ainda que excessões bastante localizadas possam contestar, um ano não foi suficiente para isso. Quando os gringos (em geral europeus) cá chegam, é sempre difícil entender de cara se eles curtem ou não. E não estou aqui dizendo que o contrário seja fatidicamente um “empecilho” – pode inclusive não ser. Certa feita brinquei ao ver um suposto estrangeiro na praia; perguntei ao colega que estava comigo: “peraê, ele é gay ou é gringo?”. Enfim, fato é que, tamanho foi o inicial estranhamento de não ser estranhado naquelas paragens, que senti mesmo saudade de ser identificado como gay, de receber aquele olhar sagaz de quem já entendeu qual é a sua. Ali, a ausência de laços (na condição de estrangeiro, quando à primeira vista nem mesmo como “estrangeiro” eu era identificado), integrou-se ao manifesto desconhecimento social da minha identidade gay. E perceba que não estou falando meramente em identidade “sexual”, e sim em existência. O mais engraçado, relacionando isso com a masculinidade dos jovens europeus de um modo geral (aqui grosseiramente tratando-a como se fosse apenas uma; excluindo, por exemplo, a performance de alguns gajos que vivem em freguesias ciganas), é que, caso estivessem no Brasil – observação compartilhada com outros amigos brasileiros que lá viveram – a maioria deles seriam aqui lidos como gays. Falo especialmente em vestimenta e gestual.
Para lembrar ainda da minha experiência como gay em Portugal – sem nem saber ao certo o que me motivou a falar sobre isso – conheci muitos portugueses enrustidos. Não é que eu não conheça brasileiros enrustidos, mas para mim foi especialmente chocante estar com um estudante de comunicação (sim, comunicação) e ele não querer admitir nem mesmo ser por mim cumprimentado na universidade – a fim, obviamente, de não levantar suspeita. Àquela altura eu já estava mais ou menos certo de que seria gay em qualquer lugar. Como disse um amigo, a minha voz denuncia; deve ser isso – embora eu aposte que não seja isso. Por falar em voz, à procura de apartamento esses dias, eu falava por telefone com um corretor de imóveis. Desde o primeiro momento ele se referia a mim como senhora; “porque a senhora isto”, “a senhora aquilo”, até que certa hora decidi, só de deboche, desconcertá-lo. Sim, pura provocação. Tantas vezes, por preguiça ou desdém, jamais “reenquadrei” o meu gênero por telefone. Pois bem, o interrompi: “eu sou homem [será?], me chamo Maycon”. Ele não evitou um riso, e, com aquela voz de senhor dublador de filmes da sessão da tarde, respondeu “oh, senhor, me perdoe”. O perdoei. O engraçado é que num dado momento, assim de repente, ele voltou a referir-se a mim como senhora. Senhora senhora senhora, até que, também sem ter nem pra quê, começou a alternar entre senhor e senhora. E eu nada fiz. É certo que minha voz o embaralhou, mas devo tê-lo embaralhado muito mais quando, ao fim da ligação, ele me pediu desculpas pelo “equívoco”, e eu disse, sinceramente, “que bobagem”. Dois ou três dias depois, lá vou eu ligá-lo novamente. Como nos falamos apenas uma vez e ele deve receber tantas ligações diariamente, procurei situá-lo ao meu respeito, a fim de que ele se lembrasse de mim. Mas fui interrompido: nos falamos apenas uma vez e bastou. Sem esconder o sarcasmo que parece tão bem afinado com a sua voz, disse, acompanhado de um risinho: “sua voz é inconfundível”. Do outro lado, ao desligar o telefone, ri muito com um amigo. Certos episodios são assim: piadas prontas. Já respondi também com sorriso quando, em consultório médico, a secretária me tratou como senhora. O detalhe é que ela estava muitíssimo constrangida, e a princípio não entendi bem o porquê, uma vez que quem supostamente deveria ficar constrangido era eu. O gênero é mesmo levado com uma gravidade abissal. Por ter ciência que sua “desatenção” tem uma razão de ser, o meu papel ali era de amenizá-la a aflição, assegurá-la de que encaro o gênero de outra maneira. No fim como uma coisa que não me pertence, afinal de contas é você quem vai dizer, melamor. É mais ou menos como aquela composição de Lazzo e Jorge Portugal: “minha pele é a linguagem/ e a leitura é toda sua”. Venho assim respondendo com bom humor a esses embaraços sociais. Mas é claro que não foi sempre assim; já engrossei muito a voz pra não ser confundido com mulher, e não vou mentir que até hoje o faço em algumas ocasiões bem específicas. As travestis também fazem – somos todas irmãs, eu você e mais um monte fazendo gênero – ê troço que dá trabalho. Não preciso dizer que na maior parte do tempo vivo por aí gozando da confusão, que às vezes ganho mesmo o dia com algumas coisas que me acontecem, como um “toma jeito, novinha!” que escutei essa semana, e que retruquei com um “Jeito?! Cê não acha que já sou jeitoso demais?”. O humor desbanca o homofóbico, faz ele passar batido com a agressão não cumprida. Estou cansado de, em banheiros de bares, restaurantes e afins, o rapaz ir entrando, olhar para mim e dar meia volta, achando se tratar de uma mulher. Com singeleza, prendo um sorriso. Ou solto – fui chamado de “borboletinha azul” por Seu Ogum de Ronda. Também pode acontecer de eu ir entrando no banheiro masculino, e alguém me interromper o percurso, querendo me dizer que estou entrando na porta errada. E se eu estiver? A única vez que não me diverti especialmente com o equívoco alheio, foi quando um jovem, que julgou-me gay – provavelmente porque era bonito e o olhei mesmo – disse que o banheiro era Masculino, mas não “inocentemente” ou por engano, e sim com visível intenção de me desqualificar (quando eram eles que se sentiriam desqualificados). Pacientemente, o esperei mijar. Mija, neguinho. Quando então ele foi lavar suas mãozinhas, também fui eu minhas lavar, numa pia lado a lado da sua. Olhei para ele e, ritmado, lhe cantei aqueles versos do Caetano: “masculino, feminino e plural” (da música “Falou, amizade”). Ele corou de vergonha, jamais esperava qualquer reação.

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Por Tu, Gal. Rua da Constituição, cidade do Porto. O muro estava já estava grafitado. Uma semana depois, cobriram de branco as bichas do norte. Em Portugal elas usam véu. Eu não.

Mas voltando aos portugueses (ah, como eu adoro os portugueses), ao contar a um amigo paraguaio que um tuga havia me beijado antes de tomar o táxi de volta à casa, jocosamente ele perguntou: “peraê, ele era português mesmo?”. Essa – e aqui quero brincar com as palavras – “aparente invisibilidade” dos LGBT em Portugal lembra-me também de uma conversa que tive com um amigo (hétero) português sobre os terríveis assassinatos motivados por homofobia que acontecem no Brasil. Comparando com a realidade de Portugal, chegamos a uma conclusão: que lá a situação é diferente não apenas pelo fato de que, por diversas razões, a sociedade portuguesa não é violenta, como são as brasileira e americana, mas também porque os gays em Portugal não dão tanto na vista. É claro que, nas afirmações excessivamente genéricas que faço, me baseio na minha breve experiência naquele país. Não quero aqui também reduzir a complexidade em que se constituem as agressões homofóbicas na simples fórmula “visibilidade X reação”, mas acredito que devamos, sim, levá em conta de algum modo. Muitas vezes me perguntei se seria por isso que uma sociedade tão católica como a portuguesa (sobretudo na sua porção menos laica – a região Norte) tenha “admitido” o casamento homossexual. União civil gay? Jóia, mas onde mesmo estão os gays? Eles podem casar, até porque já não nos importunam, e assim quem sabe façam ainda menos barulho. A “invisibilidade” LGBT em Portugal, ou pelo menos no Norte, onde vivi, às vezes me parecia tão grande que, desculpa, vivemos numa mesma casa; como assim você não sabe que eu sou gay? Ah, você jura que faço a linha discreta? Pois bem, quando eu estava para me mudar, fui avisar à senhoria, dona da casa onde eu morava, que eu “estava namorando e decidimos viver juntos”. De pronto ela disse: “Ah, ié, então vais morar com ela?”. Simulando constrangimento, respondi: “É; com ele, na verdade”. Passada, ela disse “Ah… ele?”. Dias depois eu soube, através de um amigo que lá também morava, que ela realmente não sabia que eu era gay, que achava apenas que eu tinha medo de mulher. O detalhe é que ela sempre fazia as piadas mais machistas comigo, do tipo “vais botar uma gaja na mesa”, e eu e meu amigo hétero, como gostava de a ele referir-me (por deboche, deslocando a diferença), jurávamos que essas anedotas ironizavam deliberadamente a minha sexualidade. Ele ria muito com o meu constrangimento, mas não recebeu de bom grado as queixas da senhoria por ele ter omitido a espécie a qual pertenço. A senhoria é assim como a minha família, que segundo um primo não vê nenhum problema no fato de eu ser viado, mas que afinal eu preciso dizer que sou viado. Localizar-me, enjaular-me. Já o senhorio – este sim, um sábio – que mês a mês recebia a edição da revista que eu tinha assinatura, curiosamente endereçada à “Senhora Maycon”, disse que “aquele ali [eu] nunca me enganou”. Como se eu quisesse enganá-lo. Mas ora, veja, logo eu, da malta do desbunde, que gosta de mostrar pra que veio. E mostro.
Depois de um ano exilado, ao chegar na Cidade da Bahia e antes de ir para Feira, minha terra natal, peço que meus pais dêem uma paradinha no Acarajé da Cira. Prestes a atravessar a rua, um carro cheio de rapazes para, e eles todos começam a gritar para mim um “ei, mamãe”, enquanto que, com os lábios, mandavam-me beijos (que eu recebia sorrindo e movimentando a cabeça para um lado e para o outro, como quem diz “mas vocês… não têm jeito”. É óbvio, o jeitoso sou eu. Ali, antes até que o meu paladar, tive uma plena e feliz certeza: eu estava de volta à Boa Terra. E é assim que eu gosto dela. De mamãe à novinha, rolando até um amorzinho.
E se isso pra você é homofobia…

Buracão: porque o buraco é mais embaixo

novembro 19, 2011
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Metidos em sungas vermelha – a minha, posso lembrar, relativamente pequena – e roxa, caminhávamos eu e Phyllis pela praia do Buracão. O lugar, cujo ilustre morador atende pelo afetivamente forjado sobrenome de Brown (e se já não é residente “ribeirinho”, acredito que continuará a sê-lo durante mais algum tempo no imaginário de Salvador), é conhecido pela calmaria e beleza, atributos ressaltados pela localização pouco óbvia – um “buraco” cravado na costa do Rio Vermelho. Embora suas ondas não sejam lá das mais mansas, como supostamente os são os seus frequentadores, a tranquilidade naquele espaço parece reinar, como se diz, de domingo a domingo – diferente do Porto da Barra, que, mesmo numa segunda-feira, não pára de bombar.
Aliás, no último domingo houve batida de policiais no Porto. Foram gozar do poder, literalmente provocar medo em nêgo, encostaram meimundo (justamente a “metade” preta e pobre) no paredão mas não levaram um. Vi tudo do mar. Poderia, mas não pensei: é, no Buracão podem fumar seu baseado em paz. Terceira pessoa, quem diria. Seja como for, esse é o tipo da coisa que de fato não acontece no Buracão. Maconheiros, harmonia, Brown; um caleidoscópio sedutor. A praia não corre riscos. Nós, talvez.
Nós? Ah, caminhávamos eu e Phyllis, que por acaso é o rapaz que namoro (embora no Facebook role o married porque “relacionamento sério” é péssimo, e por outro lado tenho pavor ao investimento politicamente correto do “companheiro”)… Porém na praia poderíamos ser tão-somente amigos, uma vez que sequer de mãos dadas estávamos, e, antes da caminhada, nem mesmo havíamos manifestado afeto publicamente. Acontece que um grupo de meninas, talvez o mesmo que na esquina da rua que nos leva (ou tira) da praia mexeu conosco dias passados, começou a gritar interjeições como “ai”, “ui”, ou compulsoriamente aumentadas em “aiaiaiais” e outras comoções do gênero. Falando em gênero, a nossa passagem pareceu ter doído como traição, ou falta. Agarrei Phyllis pelo pescoço e tasquei aquele beijo que mais-técnico-impossível. Em meio a algazarra que se formou, uma voz feminina que dizia “que que isso” sobressaiu. Só mais tarde fui descobrir que se tratava de uma apropriação (pouco criativa, é verdade) daquela música do Saiddy Bamba, que caiu como uma luva para esse tipo de situação – estranhar a bicharada. Me pergunto se estaríamos mesmo habilitados a responder o que tanto irritou essas mulheres, ou melhor, responder o que nos habilita a provocar nelas uma espécie de dor ou qualquer sensação emocional tão incômoda. Bem, nesses momentos, precisamos estar firmes com Sontag e sermos contra a interpretação. E porque digo isso? Porque algumas interpretações, sobretudo por parte das vítimas, podem ser tão ou mais redutoras daquelas pessoas do que a agressão sofrida, qualquer coisa como um revanchismo vulgar. Ora, é evidente que interpretei, mas politicamente sou contra a exposição dessas minhas interpretações, embora eu arrisque que sejam menos machistas do que elas próprias. Eu poderia inclusive sublimar o gênero das agressoras, mas faço questão de pontuá-lo por ter sido justamente isso que me chamou atenção no episódio. Que ainda não terminei de narrar.
Após a “fechação” e o que ela repercutiu (gritaria por parte das garotas e mirada de todo o público da praia), continuamos, naturalmente na defensiva, a caminhada. Passamos por dois grupos de rapazes, sendo que o segundo nos olhava com um sorriso não muito amável, como quem toma partido pelas meninas. Claro, nessas ocasiões há sempre o que se esquivam como há os que, sensata ou insensatamente, se posicionam. Ao retornamos para o ponto de origem, uma vez que se chega e se deixa o Buracão de um só lugar, esse mesmo grupo de rapazes, ou melhor, um deles, também foi tomado por algum sofrimento e gemeu para nós algo como “uiuiui”. Bonito, né? Mais adiante, novamente a título de protesto quase incalculado, virei para eles e disse que “é gostoso dar o cu”. E é. Baixo? Sim, decerto que eu poderia ter sido melhor escutado. Sentamos onde estávamos inicialmente, já sem tê-los mais à vista, até que passa um do bando, que sinaliza para que o outro se aproxime, que não deixe barato. Esse outro, que foi provavelmente o do “uiuiui”, partiu feito cão enraivado para cima de nós, que corremos assustados. E era de assustar. Poderia ter sido pelo seu físico, mas foi mesmo pela abordagem, o modo com que ele veio em nossa direção. Como dizem por aqui, veio “tirar pergunta”. Tirar pergunta como um metido a skinhead no Porto, quando num supermercado, em retribuição ao seu feito, eu lhe apontei o baguete com que anteriormente ele havia feito piada de mim – um baguete apontado, segurado na base, como uma piada sobre sua macheza que não lhe permite levar baguete e guloseimas fálicas. Sabe como é, um atrevimento nosso e logo eles nos vem colocar no nosso lugar de viadinho-pau-no-cu. Quando corri, na praia, quase que para os braços de um trabalhador do Buracão (a gente vive correndo de um macho para outro), o agressor da vez deu a voz: não deixa ele sair, não. Daí o dono do pedaço, que ao nos abordar foi perguntando “o que você disse ali pra mim?”, argumentou para o trabalhador que eles estavam quietos “fumando um” e nós mandamos eles tomar no cu, bem tipo viado que mexe com homem (e ainda há aqueles que não mexem). Depois – ri por dentro – ele disse que não, que não é homofóbico. E quem aqui falou em homofobia, cara-pálida? De fato, ninguém havia tocado nessa palavra, que agora “tá na boca do povo” do melhor jeito todo-mundo-sabe-o-que-é-mas-ninguém-pratica. Fomos indo embora, ainda depressa, até que o homem que nos protegeu perguntou se iríamos deixar as nossas cadeiras de praia na praia, e então o mandarim disse que poderíamos voltar, que ele não ia bater na gente, aliás, que ele nem é de briga (nós que somos). Pensei: bom, já que ele permitiu, vou voltar pra buscar minhas cadeiras, até porque tão cedo eu não teria grana pra comprar outras.
Isso foi no dia 27 de outubro, véspera do meu aniversário. Um amigo disse: é, agora você tem de escrever um post sobre isso. O que me restava. No dia eu bem que tentei, mas foi impossível. Sentimento de privação existencial. Horário de verão, chego cinco da tarde em casa e agora ainda dá tempo pintar na praia (que é praticamente o meu quintal) – pensava eu. Não mais. E talvez hoje eu só escreva porque voltei a ser um frequentador do Buracão, por que não é bem a gente que “tem de tomar vergonha na cara”. Aliás, não sou mais tão assíduo no Buracão por que há praias que me inquietam mais – o que me move. Sei que no dia 28 eu estava ao lado da Igreja de Santana no Largo da Dinha e alguém me chamou. Quando olho, quem é? O próprio. Me aproximei para escutar o que ele tinha a me dizer, como sempre faço, por princípio e curiosidade, por querer saber o que as pessoas estão pensando. Ele me disse que eu havia entendido errado, que ele não iria nos bater, que ele já tinha me visto lá por várias vezes (eu, tão estranhamente familiar), que estava fumando um baseado e que então era como um pitbull em que você dá um tapa e sai correndo. Ao fazer essa comparação com um pitbull, pensei: pronto, se já não me sentia, agora me sinto totalmente esclarecido. A verdade é que ele queria dizer para ele mesmo que não é homofóbico. E eu deixei que ele fizesse isso. E aqui eu poderia dizer “nah, deixa ele acreditar que não é homofóbico”, mas no fundo sou um esperançoso nas pessoas, não quero nunca me fechar para elas.
Ainda assim, por mais que, torto ou direito, haja Brown no Buracão, que o Brasil-carvão tente reconciliar-se com o cor-de-rosa, eu continuo preferindo o Porto da Barra, de putas viados gringos pretos e até polícia. Menos gueto, mais mistura. Confusão no melhor sentido do termo, lá onde a gente é mais baiano.
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No Porto não ficamos acuados. No Porto da Barra, porque no Porto português sofremos de “mania de perseguição”, resposta do segurança do supermercado quando acusei em alto e bom som o agressor de homofóbico. No nosso Porto não cabem muitas dicas de segurança. Em todos os outros, a dica é igual àquela prudência em assaltos: não reagir. Ou, na falta de um homem respeitável, ou na falta de um gerente que não permita que um skinhead lhe espere na porta do supermercado, as coisas podem ficar muito pior.
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Se para fundamentalistas religiosos a lei contra homofobia violenta a liberdade de expressão das pessoas, que tipo de violação, qual espécie de liberdade a homofobia constrange que não aquela primordial (de existir mesmo)?
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De toda sorte, uma coisa que todo mundo já entendeu é que ser chamado de homofóbico é uma ofensa e tanta. Agora, precisamos ir além.

Homens do Norte

abril 12, 2011

Quando eles entraram no metrô eu não pude conter, em desabafo para o meu amante, aquela velha conhecida e redentora interjeição “Nossa [Senhora!]…”, a qual, quando vinda de mim, esteja certo de que há “coisa boa” nos arredores: toda atenção é pouca. Dessa vez não foi diferente, mas foi. Acompanhado por seu amigo, o moreno de camiseta regata logo percebeu que havia chamado a minha atenção. Durante o trajeto, além de observar admirado os seus próprios músculos – gesto aliás recorrente nos mais exibicionistas – ele via pelo reflexo do espelho (pois que estava sentado paralelo a mim, embora do lado oposto) que eu de fato havia me curvado a fim de apreciar, junto a ele, o seu corpo mais ou menos “trabalhado”. O que me parece é que nesses momentos alguns rapazes, geralmente os menos inibidos e mais auto-confiantes, sentem-se instigados, em concordância com o admirador, a adorar-se, como quem diz “eu sei que sou gostoso” ou “eu (também) me comeria”. Neste ensaio um quão autofágico, a impressão passada pode ser de um consentimento tácito ao olhar que devora, oriundo da compreensão e de um sentimento de justiça por ser ele objeto de desejo.

Ao chegar na estação de destino, os rapazes levantam-se e aquele a quem eu observava com devoção encara profundamente a mim e ao meu namorado, que costuma portar-se com o seu desejo, bem, de maneira discreta. Eu não distingui com exatidão o significado daquele olhar, mas assim retrospectivamente eu acho que continha um misto de estranhamento e de tentativa de intimar-nos, agora que ele estava bem de frente à nós, que estávamos sentados ao lado da porta do metrô. Sei que achei engraçado aquele olhar um bocado inquisidor, e ri-me, como naturalmente rio em muitas situações de enfrentamento. Acho de qualquer modo que ele não gostaria de ter-me provocado riso e pode mesmo tê-lo interpretado como deboche. Foi então que insultou-me, ou melhor, chamou-me repetidamente de “paneleiro” (a correspondente lusitana de viado, bicha, marica, queer) e disse mais algumas coisas que não consegui escutar. A minha reação? Eu estava impassível. Não contente com a indiferença, ele voltou e cuspiu-me toda a saliva que acumulou no intervalo de tempo entre a porta do metrô abrir-se e outra vez fechar-se. As pessoas ficaram assustadas e deixaram escapar expressões como “Oh…”. De tão inusitada a situação, permaneci impassível, enquanto meu namorado, este mais afligido, limpou-me algum resquício de cuspe que ficara no meu rosto. Enquanto isso, o tempo-trivial tomava conta mais uma vez do metrô e as (não muitas) pessoas que lá estavam, aos poucos, uma a uma, esboçavam feições de “ele fez por merecer”, como se alguma ação que realizei durante o percurso, ou quem sabe uma condição ontológica, autorizasse o gostosinho a submeter-me àquela situação vexatória e humilhante.

Deixei o metrô no lixo, sub-local que não é nenhuma novidade para nós. Logo na saída da estação, um rapaz corria em direção a mim e ao meu namorado, que caminhávamos de mãos dadas. Já alarmados, soltamos as mãos e olhamos pra trás, mas o pobre rapaz corria por qualquer outra razão, não nos queria agredir. O aprendizado de temer não é dos melhores. E digo aprendizado por que, até que me aconteça algo, eu nada sei a respeito do mundo. E essa não é a filosofia do risco. O risco existe para mim hoje, que não quero estar de mãos dadas com um rapazinho à meia-noite. No caminho de volta à casa, eu compreendi que aquele jovem, que devia contar com os dezenove ou vinte anos, cuspiu-me para fazer-se homem, e consequentemente superior a mim, capaz de colocar-me no meu devido lugar: de escória.

Ao relatar o caso a um amigo português, ele rogou-me “Por favor, Maycon, não olhe assim para os rapazes do Norte”. E no fundo eu sei que a primeira mulher em que percebi a expressão facial compreensiva ante à agressão, vale dizer, em concordância com o homem, pode ter sido a mãe que a dois dias atrás, igualmente no metrô, tapava o rosto da criança, do menininho, para que ele não visse a indecência que era a minha mão pousada sobre a perna do meu namorado. Ou para que a visualização dessa cena não o desvirtuasse das dignificantes lições dos homens do Norte*.

* Decidi manter essa alcunha, além de fins estéticos, como uma provocação acerca de imaginários e identidades masculinas em Portugal. Evidentemente não sou da opinião de que todo homem do Norte é homofóbico.

Renato Seabra não tem culpa

janeiro 25, 2011
Recentemente tenho acompanhado a repercussão do caso Carlos Castro x Renato Seabra. Antes de entrar na discussão do que anda a ser dito por aí, gostaria de resumir para os amigos brasileiros que não tomaram conhecimento do ocorrido: o primeiro trata-se de um famoso jornalista “cor-de-rosa” (de fofocas do mundo artístico), 65 anos, assumidamente gay, enquanto que o segundo é um manequim de 21 anos, heterossexual e anônimo até pouquíssimo tempo, visto que começou a carreira pouco após conhecer o jornalista, em meados de outubro do ano passado. Pecando pelo meu extremo reducionismo, direi que a história é a mesma: relação contratual. O gay que tem prestígio social e boas condições financeiras e o hetero que tem juventude, beleza e corpo. O desfecho todos nós já conhecemos (sendo mais uma vez irritantemente reducionista): homicídio com requinte de crueldade.
As manchetes que envolvem os depoimentos dos familiares e amigos são claras: como afirmou o antropólogo português Miguel Vale de Almeida em seu blog, “jovem lindo e inocente é pervertido por velho lúbrico do mundo do glamour dominado pelos gays”. A irmã diz que Renato Seabra estava farto de luxúria, o amigo diz que Renato é a pessoa mais maravilhosa que ele já conheceu, que com certeza há alguma “artimanha” nesta história. Portanto o “versus” que pontuei no início do texto é proposital: de fato é corrente a discussão sobre quem seria o bandido do caso. Esta é uma estranha capacidade que a homofobia tem, assim como outros preconceitos, de converter a vítima em culpada. Se as mensagens trocadas entre Carlos e Renato no facebook sugerem uma espécie de relação amorosa (e como toda relação, de negociação de valores, trocas), a família do jovem está convencida de que este não é mais que uma vítima do velho safado. Essa semana o tio de Renato fez um chamado para que fosse explicado “quem era o Carlos Castro, quem era o Renato e apelando a todos para que seja feita justiça tendo em conta história de vida de ambos. Apelo também a todos os que eventualmente foram abusados pelo Carlos Castro, seja física ou psicologicamente, para que se juntem na defesa do Renato”. Neste sentido é muito claro que a identidade sexual (desviante) de Carlos Castro já posiciona-o numa condição de imoralidade e demonização.
Desejando ir além do discurso demasiado “suspeito” dos familiares e amigos, busquei, tanto através de redes sociais como twitter e facebook quanto da blogosfera, o que as pessoas andam a pensar. Percebi as máculas de que está prenhe o reconhecimento da “bicha velha” e como a sexualidade é eminentemente interseccionada por questões de âmbito geracional. O desejo deve escapar à velhice, e quando isto não acontece (e não acontece), o velho torna-se alguém sujo e execrável. Os anos de experiência renderam a Carlos Castro certa habilidade para corromper jovens heteros e ingênuos – mas ambiciosos – Carlos Castro foi vítima dele mesmo. Justifica-se assim a criação da taxativa comunidade no facebook “Renato Seabra – Deus é grande e vai haver justiça”, que já beira 6.000 membros, a petição pública pela extradição do jovem de Nova York (local onde aconteceu o crime) para Portugal, que já ultrapassa as 2.000 assinaturas e a ponderação por parte dos amigos da criação de uma conta de solidariedade para pagar pela defesa de Renato Seabra assim como de eventos promocionais com o mesmo intuito. Renato Seabra agiu não apenas em sua legítima defesa como na defesa de todos os jovens heteros, belos e dispostos.
Segundo a página Dezanove.pt, um leitor do Público online declarou: “não choro uma lágrima pela morte desse sujeito. Choro sim pela vida destruída do jovem (…)”. Judith Butler tem razão. Como sentenciou a filósofa,  “certas vidas serão altamente protegidas, e a violação das suas exigências de santidade será suficiente para mobilizar as forças da guerra. E outras vidas não encontrarão apoio tão rápido e tempestuoso e não serão sequer qualificáveis como ‘lutificáveis’.”

Vigilância insone, portão entreaberto

abril 17, 2009

“Minha política é meu corpo, provendo e se expandindo com cada ato de resistência e com cada um de meus fracassos”

Adrienne Rich

Estava eu e mais dois amigos hoje umas quatro da tarde deixando a UFBA/Ondina pelo portão principal, quando havia um grupo de seguranças (que velam somente pelo patrimônio, vale frisar) entre risos e conversas, quando um deles comentou “olha, que coisa meiga”, claro, em tom de deboche, se referindo a mim, que, a título de curiosidade, como se não bastassem-me as madeixas, estava trajado numa calça com listras vermelhas e brancas, camiseta azul-turquesa desbotada (do tipo baby-look) e uma rústica bolsa capanga. Com tais vestes, no mínimo uma meiguice achariam. Não sei sou exatamente meigo, mas me sei itinerante entre gêneros, e certamente a sua fala foi uma denúncia da minha ousadia, mas não só numa liberal democracia pode ser interpratada como sanção a um evidente “desvio” à norma. Felizmente ou não, não escutei a voz do VIGIA, um dos meus amigos relatou o seu comentário quando já estávamos um pouco distante da Universidade, fato que me levou a não ter ânimo para voltar, mesmo porque tenho certeza de que me aborreceria muito com aqueles homens, e a minha defensiva momentânea foi calar o que nem mesmo cheguei a ouvir. Caminhei mais um pouco, e me arrependi de não termos voltado. Me senti um pouco covarde, por uma lamentável atitude de conformismo, porque senão todos os dias, quase todos os dias, com um olhar que seja, como tantas e tantos, sinto a soberania do meu corpo ameaçada, e olha que nem sequer toquei na temática da sexualidade, mesmo que ela esteja implicitamente articulada com o discurso de regulação do corpo. Ironicamente, havíamos concluído (mas não esgotado) o estudo do livro Problemas de gênero, da Judith Butler, no qual, discutindo com outros/as autores/as, ela verifica a incessante tentativa do sistema de heterossexualidade compulsória em vedar as superfícies do corpo, tornando assim, o sujeito inteligível dentro de limitadas permeabilidades. No entanto, como os seguranças da Universidade puderam constatar, o binarismo entre homem e mulher é uma ficção, sendo que reside sobretudo no nosso corpo, que é sempre contingente, a potencial subversão das categorias do gênero, que só o é enquanto atos performativos significantes.
Fui caminhando, maturando o acontecimento e processando a sua repercussão reflexivamente. Preocupante onde quer que seja, mas o é ainda mais nesse espaço social que nos é cotidiano. Inadmissível ser tratado de tal maneira, ainda mais por alguém que presta serviço (seja ou não vinculado formalmente) à própria instituição. Enfim, eu gostaria de compartilhar convosco tais angústias, sobretudo a de ter-me calado diante disso…