Ao chegar ao Enlaçando Sexualidades para assistir à primeira mesa-redonda do seminário, fui já surpreendido por uma performática senhora que, no decorrer da sua fala, revelou-se puta. Sim, puta, porque considerá-la como “profissional do sexo” seria impingi-la um politicamente correto cujo ideal asséptico ela é veementemente aversa. Em contraposição daquele que proferiu a conferência de abertura do evento, o deputado Jean Wyllis, ela não recorreu à Hannah Arendt ou a qualquer Foucault para embasar as suas reflexões. De fato, quem esperava uma militante profissional do sexo como quem esperou um parlamentar (e militante) homossexual, com esse tom de respeitabilidade de que estão impregnadas essas palavras – e performances – não pôde conter um sobressalto, ou um inesperado prazer. Gabriela [Leite] na mesa sobre o mundo do trabalho fez questão de relegar a nomenclatura “profissional do sexo” como uma categoria restrita a esse mundo a que ela foi convidada a falar; um conceito estranhamente forjado, quando em verdade é como puta que, na sua vida cotidiana, ela se identifica.
Ora, com esse produtivo deslocamento ela acabou por prôpor uma política da irreverência e da autenticidade, do gozo pelo execrável. Gabriela gosta de ser puta. Por isso recusa abandonar o estigma ao passo em que procura positivá-lo, uma vez que, ao contrário de muitos, desacredita na ideia de que um novo vocabulário para designá-la, mediado pelo politicamente correto, possa transformar sua marginalidade originária. Para ela o que o acionamento discursivo do politicamente correto faz é higienizar, normalizar, ocultar a operação de um preconceito arraigado – o que o impede de se constituir, portanto, como a via mais segura para empreendermos uma real conversão de juizos de valor.
Gabriela falou ainda sobre a confusão sociocultural que paira a respeito de conceitos tais quais sexo e corpo no seu mundo laboral, de modo que aquele que faz trabalho braçal é acusado de vender a sua força de trabalho, enquanto que a prostituta vende o seu corpo. Bem-humorada, ela lembrou que uma amiga a disse certa feita que se de fato vendesse o corpo, ela já nem mais existiria, de “tanto homem” pra quem já “deu”.
Outra confusão que geralmente é feita é entre tráfico de mulheres, turismo sexual e exploração sexual de menores. Ela defende que migração para o trabalho não é e nem pode ser confudida com tráfico. Assim, muitas mulheres que decidem ir à Europa a fim de “ganhar um dinheiro a mais” são vistas como vítimas que nem sabe que as são. Gabriela relata casos de policiais federais que, sabe-se lá com que evidência, caso desconfiem que a mulher está viajando para se prostituir, barram a sua ida.
Enfim, este escrito é uma mera tentativa de reproduzir, embora de modo demasiado sintético, a fala daquela dama – da noite ou do cassino – sobretudo para quem não se fez presente na ocasião. Algumas partes que também me afetaram foram deliberadamente suprimidas por estar certo da limitação da língua escrita de reconstituir a experiência em sua plenitude. Na verdade, mais que isso. Eu poderia até imitá-la, como o fiz com certo deleite para alguns amigos, mas então lançaria mão de um decisivo recurso: a performance. Para pessoas tão vivazes como Gabriela é impossível apartar o que ela diz dela mesma; por isso qualquer coisa que eu aqui escreva não vos tocará como a mim naquela manhã. De todo modo, compartilho as suas palavras e proposições porque ela traça no seu discurso, de modo mais ou menos assistemático, críticas à moral social que marca todas que se sentem putas. E que gostamos disso.
Tags: feminismo, Gabriela Leite, prostituição
outubro 15, 2011 às 9:18 pm |
rapaz, eu já gosto desse texto…
outubro 17, 2011 às 5:35 pm |
Oh Lucas, obrigado. Que bom que gosta 🙂
outubro 17, 2011 às 6:24 pm
rola de o senhor participar da FÁLiCa (Festa Anti-Literária de Cachoeira, paralela a FLICA 2012) com uma mesa “Estética gay, uma cacofonia”?
outubro 17, 2011 às 9:17 pm |
Adoraria aceitar teu convite, Lucas. Mas sobre esse tema não posso participar da mesa a não ser na plateia…
outubro 17, 2011 às 9:18 pm |
Ainda assim, fico muito agradecido.
outubro 17, 2011 às 9:19 pm |
homem, se gmail é qual?
adiciona lá que a gente conversa.
outubro 17, 2011 às 10:39 pm |
Meu gmail é mayconslopes@gmail.com, te adicionei no gtalk 😉
março 20, 2012 às 2:45 pm |
[…] a ele por este brilhante post em que enaltece o fato de puta ser puta mesmo, e não profissional do sexo. E é particularmente saborosa o modo com que politiza, poetizando, suas vivências pessoais mais […]
setembro 15, 2012 às 9:08 pm |
certo…ser mercadoria sexual é um direito noso..será que as meninas traficadas acham isso também? que total falta de empatia para a realidade da nossa exploração sexual,típico de um homem que nos enxehga como bundas e peitos para seu desfrute!Gostaria de saber se acharia engraçado que mulheres desua família estivesse nesse “negócio”.E os hoemns? nunca é direito de vcs serem prostitutos!E realmente,mulheres nunca são vítimas,adoramos ser estupradas por dinheiro!! afinal,os traficantes nem precisam nos enganar para nos traficarem!!Típico textinho distircido a favor do sex trade que alimenta a cultura do estupro!
setembro 24, 2012 às 11:04 am |
1) a questão não é de direitos, essa gramática geradora de dívida; mas de conveniência. é mais Sade e menos Kant, diria São Paulo de Tarso;
2) os homens têm o direito (se de direito se tratasse) de serem prostitutos. Maycon não só não nega isso, como entendo que ele exerce isso sempre que pode. Eu também, que já ganhei 20 dolares de gorjeta numa quarta-feira de cinzas em New Orleans dançando só de cueca sobre um balcão de bar;
3) vitimismo feminista é um caso clássico em que a sintaxe contradiz a semântica, e vice-versa. Esquizofrenia daquelas bem catatônicas. Se as mulheres querem se emancipar, não deveriam demandar emancipação, bem antes agir emancipadamente desde já. As putas, bem ou mal, fazem isso. Ao menos aquelas que não são putas em nome de um homem, de um cafetão, etc – até porque as que o são não diferem da dona de casa petit-bourgeois. Ao contrário, são seu nêmesis;
4) me parece, ao contrário, que ao defender a prostituição como atividade econômica autônoma e legítima, não há qualquer “cultura do estupro” – o estupro inviabiliza tal trabalho tanto quanto o assalto inviabiliza a padaria de esquina.
setembro 29, 2012 às 9:54 pm |
Estou absolvido então? (como cliente)
Ou devo permanecer no anonimato, reduzir-me à minha insignificância, e desistir de tentar resignificar e compartilhar lembranças de certos gozos que, desconfio, só seriam possíveis com elas (as putas, quero dizer)?