Laerte sem perder a ternura

Já passava da meia-noite do domingo quando acordei a minha mãe para ver o Laerte na tevê. Quando um amigo disse que ele estava em Marília Gabriela, perguntei em tom de lamento se era na GNT, ao que ele me respondeu que não, que passava no SBT. É claro que fiquei tão animado com a possibilidade de vê-lo na tevê (aberta!), que deixei o computador e toda a gente que no momento eu conversava a ver navios. Fui ver Laerte com a minha mãe, que – eu estava certo – não se arrependeria dos minutos de sono abdicados na véspera de uma segunda-feira. Só a acordei porque a linguagem de Laerte não é maçante como o bêabá de tantos militantes que com seus discursos pré-fabricados juram que podem transformar o mundo sem antes tocá-lo ou envolvê-lo – ladainha que seria ainda menos tragável numa noite de domingo. Em tempos de hiper-institucionalização dos movimentos sociais, Laerte dá uma lição de como tornar-se “acidentalmente” porta-voz da dissidência.
Recentemente escutei num encontro que discute a diversidade sexual a opinião de uma militante que acusa o “polêmico” texto “Desnaturalização da heterossexualidade” como inoportuno, pelo fato de ter sido publicado num dos mais importantes periódicos do Brasil, a Folha de São Paulo. Embora enfatize concordar com as questões esboçadas pelo autor – o professor Leandro Colling – para ela o artigo deveria ter-se restringido ao público especializado: leia-se estudiosos do gênero e sexualidade. Sob a tacanha justificativa de que a sociedade não tem preparo para a sua leitura, ela foi além e julgou que a publicação vai de encontro a anos de luta do Movimento LGBT do Brasil. Me pergunto então como esses militantes que desejam restringir múltiplas manifestações da diversidade a um redutor manual de como portar-se com o “grande público”, incontestavelmente heterogêneo, receberam Laerte ontem no seu sofá.

O cartunista Laerte Coutinho, ou Sonia Cateruni

A postura dele poderia ter sido tão agressiva quanto a da filósofa Beatriz Preciado, que defende que os banheiros públicos são uma arquitetura  que ardilosamente funciona como produtora (e enquadradora) de gêneros. No entanto sua doçura cumpre a pretensa invasão do agressivo, figurando aqui como um autêntico “doce bárbaro”, vide a lendária conversa de Caetano com Jorge Mautner, o qual assim qualificou Jesus – que conseguiu, só com amor e palavras bonitas, sem derramar uma gota de sangue, dizimar o Império Romano. Ora, por um acaso ele se perguntou se a sociedade tem preparo? Não precisa, dispensa essa pedagogia da última hora. Espontaneamente astucioso e sutilmente militante (a la Silviano Santiago em seu texto “O homossexual astucioso” – parte de um livro cujo belíssimo título é “O cosmopolitismo do pobre”), Laerte me lembra quando eu calçava rubros saltos-altos da minha mãe na infância, ou meus lamentos com relação ao fato do vestuário “feminino” ser tão mais vasto que o nosso, que pouco experimentamos com o nosso topless autorizado.
Enfim, não me arrependo de ontem à noite ter despertado a minha mãe, que acha que a entrevista deveria ter sido exibida mais cedo, todavia muito lastimo por não ter tirado o sono do meu pai, porque em verdade é o meu pai a sociedade despreparada que, sem precisar ser austero, Laerte habilita. Conquista.

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8 Respostas to “Laerte sem perder a ternura”

  1. Raul Corrêa Says:

    Lindo!

  2. Lucas Jerzy Portela Says:

    “a sociedade não está preparada” é a velha tutelagem brazuca, forma-estado em sua função pura, aplicada pelos “ativistas” que se pretendem “anti-partidários” (mas mimetizam partidos em tudo).

    Sobre isso, é sempre bom ler Abandone O Ativismo, um clássico do AndrewX direto do ReclaimTheStreets de Londres dos anos 1990. -> http://www.cedap.assis.unesp.br/cantolibertario/textos/0004.html ou http://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:http://www.cedap.assis.unesp.br/cantolibertario/textos/0004.html

    Carnavalizem, surubeiem. Ao invés de rage, rave (não essas “festinhas de viado de playground” que rolavam em Salvador uns anos atrás). Não é isso que aprendemos na pipoca desde os tempos de “todo mundo na praça / muita gente sem graça no salão” (isto é: desde antes de haver corda, abadá e camarote)?!

    Mete o cotovelo, e sai abrindo caminho! – mas pega no meu cabelo pra não se perder e não terminar sozinho. É aos pés do poeta, onde sol se levanta e lua se deita, que tudo tem de pintar. Com essa cara limpa ao sol do meio dia. Pelas andanças danças no meio da multidão, sem mascara cara cara a cara. Lá onde a massa descansa de olho na festa.

  3. Willian Fraga Says:

    Acho Laerte delicado e jeitoso com as palavras.Lindas e sensíveis também são as suas palavras.

  4. Kelly Elias Says:

    Belo texto. Parabéns

  5. Anna Says:

    gostei da forma afetiva que vc aborda a afirmação, a agilidade e a inteligência de laerte 🙂 parabéns!

  6. davy Says:

    Queer deseja ultrapassar o processo de normatização / normalização posta em luta por lgbts. Penso em lgbts como meio, e queer, como o fim. Não acho ser possível pensar em não trazer à normalidade hoje as identidades lgbts por via de direitos civis. Entretanto creio ser a luta queer o horizonte para onde devemos pensar nossa parada.

    • Lucas Jerzy Portela Says:

      GLBTTWZ-Ky = Viadagem Institucional

      Queer é pouco. O que eu quero é outra coisa, mais profunda e antiga: a libertinagem do Antigo Regime. Sade, Fourier, Laclos, Restif de La Bretonne. A prostituição como arte antiga, não como indústria do gozo.

      Sim, sou elitista. Pobre de quem não é. Sejamos reacionários num sentido positivo e maoísta.

  7. Lucas Jerzy Portela Says:

    “a sociedade não está preparada” é a velha tutelagem brazuca, forma-estado em sua função pura, aplicada pelos “ativistas” que se pretendem “anti-partidários” (mas mimetizam partidos em tudo).

    Sobre isso, é sempre bom ler Abandone O Ativismo, um clássico do AndrewX direto do ReclaimTheStreets de Londres dos anos 1990.

    Carnavalizem, surubeiem. Ao invés de rage, rave (não essas “festinhas de viado de playground” que rolavam em Salvador uns anos atrás). Não é isso que aprendemos na pipoca desde os tempos de “todo mundo na praça / muita gente sem graça no salão” (isto é: desde antes de haver corda, abadá e camarote)?!

    Mete o cotovelo, e sai abrindo caminho! – mas pega no meu cabelo pra não se perder e não terminar sozinho. É aos pés do poeta, onde sol se levanta e lua se deita, que tudo tem de pintar. Com essa cara limpa ao sol do meio dia. Pelas andanças danças no meio da multidão, sem mascara cara cara a cara. Lá onde a massa descansa de olho na festa.

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